terça-feira, 2 de junho de 2009

Sistema nervoso e comportamentos: generalidades e marcos históricos


O conhecimento das relações entre o corpo e o espírito fascinou e atraiu sempre os pensadores, filósofos e cientistas, desde os tempos mais recuados e em todas as civilizações. Porém, é só no fim do século XIX que se costuma situar os inícios históricos duma abordagem científica propriamente dita da questão, abordagem que levará, na segunda metade do século XX, ao estabelecimento de uma disciplina ainda balbuciante e de limites incertos a neurologia dos comportamentos. Este primeiro capítulo destina-se essencialmente a uma visão sumária destas bases históricas.

 

Origens

As concepções actuais sobre as relações cérebro-comportamento provêm da fusão, no fim do século XIX, de quatro tradições experimentais: a neuroanatomia, a neurofisiologia, a neuroquímica e a psicologia.

 

Neuroanatomia

Neuroanatomia é o ramo da anatomia que estuda a organização anatómica do sistema nervoso. Nos animais vertebrados, estuda as inumeráveis ligações entre os nervos do cérebro até a região ("periférica") do corpo a qual tem conexão e a estrutura interna do cérebro, em particular. Ambos assuntos são objecto de estudos extremamente elaborados. Como resultado, o estudo da neuroanatomia desenvolveu uma disciplina em si, embora também represente uma especialização dentro da neurociência. Investiga também, com igual importância, o delineamento das regiões do cérebro, a distinção entre as estruturas e mantêm centralizado seu foco de atenção para a investigação de como este complexo sistema trabalha. Por exemplo, muito de que os neurocientistas aprenderam advém da observação sobre "lesões" em áreas específicas do cérebro e como afecta o comportamento na relação com outras funções neurais.

 

Neurofisiologia

As suas origens remontam ao século XVIII quando o italiano Galvam descobriu que as células nervosas de diversos animais eram capazes de produzir electricidade.

No decurso do século XIX desenvolveu-se a electrofisiologia, baseada no princípio de que as células nervosas utilizam as suas capacidades eléctricas para veicular a informação de uma para outra, sob a forma de uma mensagem codificada segundo regras precisas.

 

Neuroquímica

Esta, por seu lado, começou no fim do século XIX com Claude Bernard, o famoso fisiologista francês, uma das descobertas primordiais do qual foi mostrar que certas substâncias químicas (em particular aquelas a que se chama hormonas) eram capazes de actuar sobre determinadas porções do sistema nervoso, provocando assim um efeito específico. Daí partiram todas as concepções modernas da transmissão química do influxo nervoso (e em especial a noção de sinapse, cuja importância veremos), do mesmo modo que todas as suas implicações farmacológicas.

 

Psicologia e neuropsicologia

Na realidade trata-se provavelmente da mais antiga destas quatro disciplinas, em particular a neuropsicologia, cuja definição faz apelo à questão das relações entre a matéria e o espírito, questão que se encontra em todas as filosofias até à mais remota Antiguidade. Contudo, a noção de que o cérebro é a sede das faculdades do espírito só apareceu bastante tarde, no começo do século XIX. E verdade que certos pensadores, por exemplo Descartes, tinham já proposto localizar “a sede da alma” em certas estruturas do cérebro: a epífise para Descartes, os ventrículos cerebrais para outros, mas este tipo de intuição não resistiu aos primeiros passos, mesmo grosseiros, dum método “científico”.

 

 

 

Duas concepções opostas

Gall e o despertar do localizacionismo

Costuma-se atribuir as origens da neuropsicologia a um médico austríaco chamado Gall, fundador de “ciência” que hoje nos parece pelo menos contestável, a frenologia. Gall pensava que a cada parte do cérebro correspondia uma faculdade intelectual ou psíquica, distinguindo assim nada menos que 27 qualidades ou funções, cada uma localizada numa parte precisa do cérebro.Deste modo, a linguagem, o cálculo, a visão, eram colocadas de maneira aparentemente arbitrária na superfície cerebral, mas também qualidades tão diversas como idealismo, a combatividade, e mesmo o amor dos pais, tinham cada uma a sua localização própria. O mérito de Gall foi todavia sugerir pela primeira vez uma correspondência função/localização (nisso ele pode ser considerado o primeiro “localizacionista”). Por outro lado, teve a intuição de escolher o córtex cerebral como sede destas funções intelectuais, o que, como veremos, só em partes é verdadeiro, mas representa um notável avanço em comparação com as crenças da época.

 

 

A teoria das localizações cerebrais no início do século XIX. A frenologia, criada pelo austríaco F. J. Gall, distinguia um certo número de “funções”, cada uma localizada precisamente numa parte do cérebro. Podia suspeitar-se do desenvolvimento particular duma destas funções por uma bossa mais importante do crânio em correspondência com a região cerebral implicada.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Teorias globalistas

As ideias de Gall eram, como é evidente, eminentemente criticáveis e ocasionaram contestações violentas por parte de alguns dos seus contemporâneos, em especial o francês Flourens que, tomando posição contrária à de Gall, afirmava que as funções mentais não eram localizadas, estando sim o cérebro inteiro implicado em cada função mental, que cada parte do cérebro era capaz de realizar cada uma das funções cerebrais. Esta teoria globalista, também chamada equipotencial, teve mais tarde grande êxito, em particular junto de certos teóricos alemães e Freud foi um seu defensor fervoroso.

Em meados do século XIX, H.Jackson deu uma contribuição fundamental para este debate ao adoptar uma posição um tanto à margem das duas correntes precedentes, A concepção de Jackson, baseada numa visão evolucionista do cérebro humano, introduzindo a noção de hierarquia entre os centros nervosos, do mais simples para o mais complexo, estipula que os centros mais “elevados” são a resultante da combinação de várias funções elementares, o que implica conceber sempre o cérebro no seu conjunto quando se considera uma função.

 

 

Especializações do sistema nervoso central

O sistema nervoso central (SNC) é um conjunto contínuo de formações nervosas no seio do qual se distinguem quatro partes, cada uma com um certo número de funções ou especializações:

A medula espinhal é a estrutura mais rudimentar e igualmente a mais próxima do meio ambiente. Por intermédio do sistema nervoso periférico, que lhe dá continuidade, ela recebe as informações provenientes do ambiente e envia o comando do movimento até aos músculos.

O tronco cerebral, interposto entre a medula e o cérebro, tem um triplo papel:

-Um papel de passagem das vias ascendente e descendentes;

-Um papel idêntico ao da medula, mas para o segmento cefálico (cabeça e pescoço), por intermédio dos nervosos cranianos;

-Um papel específico de controlo de certas funções vitais (sono, temperatura corporal, respiração, etc.).

O cerebelo, situado como derivação em relação às três outras estruturas, possui funções relativamente menos importantes, que dizem respeito sobretudo ao equilíbrio e ao controlo dos movimentos do corpo.

O cérebro, por fim, que comporta dois hemisférios bem distintos, é responsável pelas funções mais elaboradas, perceptivas, motoras e cognitivas, essencialmente a cargo do córtex cerebral. Assim, o lobo frontal está implicado na programação dos actos e movimentos: o lobo parietal, nas sensações somáticas; o lobo occipital, na visão; o lobo temporal, na audição, na aprendizagem, na memória, nas emoções. Podem sublinhar-se desde já duas características gerais do cérebro:

-Noção de cruzamento: cada hemisfério comanda as funções respeitantes à metade oposta do corpo (hemicorpo contralateral);

-Noção de assimetria (anatómica, mas sobretudo funcional), que se apresenta como uma das diferenças principais do cérebro humano em comparação com o dos animais, e portanto como um resultado final do processo evolutivo.

As principais partes constitutivas do sistema nervoso central: 1medula espinhal; 2 tronco cerebral; 3 cerebelo; 4 hemisfério cerebral.

 

Linguagem: modelo da especialização do cérebro

A questão das relações entre o cérebro e a linguagem revelou-se desde os primeiros passos da neuropsicologia como um exemplo privilegiado e, com isso, constituiu sempre um ponto importante para os teóricos das diversas correntes. Os nossos conhecimentos do substrato neuroanatómico da linguagem começam com a descoberta pelo cirurgião parisiense Paul Broca em 1861 de que a afasia, ou “perda da faculdade de linguagem articulada”, estava ligada a lesões de uma região muito particular do córtex do hemisfério esquerdo do cérebro, região chamada mais tarde “área de broca”.

Na realidade, a descoberta de Broca só tinha a ver com uma das formas de perturbações da linguagem e em 1876 o alemão K.Wernike, apenas com 26 anos, publicava um trabalho célebre onde apresentava a afasia como um “complexo sintomático”. Distinguindo:

-as afasias expressivas, ligadas a uma lesão da área de broca;

-as afasias receptivas, em que a perturbação predomina na compreensão da linguagem e que estão ligadas a lesões de uma região mais posterior do córtex do hemisfério esquerdo, região que virá a ser dominada área de Wernicke. Para além do domínio restrito da linguagem, Wernicke propunha uma teoria das funções mentais, segundo a qual somente as funções mais elementares (sensoriais e motoras) estão estritamente localizadas no córtex, ao passo que as mais complexas dependem de estruturas que ligam entre si as estruturas sensoriais e motoras (as áreas associativas e os feixes de substância branca). Esta teoria é conhecida pelo termo “associacionismo”.

 

Método anátomo-clínico

Deste modo, o fim do século XIX e o começo do século XX conheceram uma grande voga do associacionismo, tendo sido estudadas numerosas funções mentais nesta perspectiva, graças ao que ainda se chama método anátomo-clínico, que consiste em observar clinicamente um indivíduo portador de uma perturbação funcional ligada a uma lesão cerebral e, se o indivíduo morre, analisar o seu cérebro e determinar os limites da lesão. Este método permitiu que os autores do princípio do século descrevessem um certo número de síndromes neuropsicológicas, e a qualidade das suas observações, tanto do ponto de vista comportamental como anatómico, faz com que essas descrições sejam válidas ainda hoje. Contudo, assistiu-se rapidamente ao abandono quase completo dessa abordagem localizacionista, a tal ponto que a abordagem globalista foi, durante toda a primeira metade do século a mais correntemente admitida.

 

Período moderno: estado actual da questão

Estimulações corticais

Foi preciso esperar pelo fim dos anos 50 para ver ressurgir o interesse pelas localizações cerebrais com os trabalhos de W. Pekfield, um neurocirurgião que se consagrou especialmente ao estudo e ao tratamento cirúrgico dos epilépticos. De facto, para certos epilépticos em que o tratamento medicamentoso se mostra incapaz de evitar o aparecimento das crises, está por vezes indicada uma intervenção cirúrgica que consiste em suprimir a parte do córtex que está na origem dessas crises. Nestes casos é útil estimular electricamente, antes do acto cirúrgico, as zonas corticais suspeitas e observar as modificações comportamentais causadas pela estimulação. Com este método, e recorrendo a uma técnica de exploração surgida alguns anos antes, a electroencefalografia, Penfteld conseguiu estabelecer um verdadeiro mapa funcional do córtex cerebral humano, confirmando assim a localização das diferentes funções elementares (motora, sensitiva e sensoriais). Ele mostrou, sobretudo, que a estimulação no hemisfério esquerdo das áreas cuja lesão causa a afasia era susceptível de provocar modificações da linguagem; além disso, demonstrou a importância na motricidade e na linguagem duma área até então desconhecida (a área motora suplementar).

 

 

 

 

 

 

 

Revolução da imagem

Na mesma época começava a desenvolver-se na neurologia um fenómeno que viria a não cessar de evoluir até hoje: a possibilidade, graças a meios técnicos cada vez mais aperfeiçoados, de visualizar estruturas cerebrais durante a vida do doente: primeiro, a arteriografia e a encefalografia gasosa, depois, mais recentemente, o scanner (cintigrafia) e a imagiologia por ressonância magnética (IRM). Todos estes métodos permitiram e permitem localizar de maneira cada vez mais precisa as lesões do cérebro e permitem, portanto, estabelecer a correlação anátomo-clínica durante a vida do doente. Finalmente, muito recentemente, surgiu uma nova técnica de imagiologia cerebral, a tomografia por emissão de positrões (TEP), capaz de fornecer imagens já não somente morfológicas, mas também metabólicas, por outras palavras, de mostrar o cérebro “em funcionamento”.

 

Alguns exemplos de dados recentes sobre as relações cérebro-comportamento

Um dos factos mais perturbadores que ilustram o bem-fundado duma abordagem loca-lizacionista das funções cerebrais é o exemplo do papel do cérebro nos processos emocionais. Assim, demonstrou-se recentemente que, tal como o hemisfério esquerdo está encarregado de elaborar os aspectos instrumentais da linguagem, o hemisfério direito está por sua vez especializado no tratamento e na produção de toda uma componente, em particular emocional, da linguagem, designada por prosódia. E bem sabido que as modulações da linguagem são tão necessárias para a comunicação como o próprio conteúdo linguístico: do mesmo modo que lesões do hemisfério esquerdo serão responsáveis por afasias, as lesões do hemisfério direito perturbarão regularmente os aspectos melódicos da linguagem, causando dificuldades em exprimir ou sentir a componente emocional da linguagem.

Sabe-se, igualmente, que doentes portadores de epilepsia temporal, isto é, que apresentam uma hiperexcitabilidade neurónica localizada ao lobo temporal, terão em particular manifestações que incidem electivamente na esfera afectiva: na altura das suas crises epilépticas, que representam uma hiperactivação anormal de um grupo de neurónios do lobo temporal, o indivíduo descreverá impressões incontroláveis de já visto, já vivido, angústias ou reacções de pânico imotivadas, ou pelo contrário sensações de bem-estar inexplicáveis, sensações sexuais, inclusivamente sensações de êxtase místico. Também aqui se tem a prova formal de que uma zona bem delimitada do cérebro está especificamente implicada numa função cerebral por mais complexa que seja. Provou-se também que existe no hemisfério direito uma região cuja lesão provoca isoladamente a impossibilidade de reconhecer rostos anteriormente familiares e uma região responsável pela orientação no espaço; no hemisfério esquerdo, uma região cuja lesão perturba especificamente a leitura e a escrita, outra especializada no cálculo e no esquema corporal, etc.

As teses localizacionistas parecem, assim, prevalecer de novo. Não devemos, contudo, considerar o cérebro, como o fazia a frenologia de GALL, sob a forma de um mosaico de estruturas justapostas, tendo cada uma o seu papel próprio. A realidade é muito mais complexa: numerosas funções estão subdivididas em subfunções, representadas elas próprias por conjuntos de neurónios dispostos não só em série mas também em paralelo, e não apenas em regiões cerebrais vizinhas mas igualmente em regiões mais afastadas. Por exemplo, vimos que existem várias zonas cerebrais distintas implicadas na linguagem, de tal modo que o sistema cerebral da linguagem funciona sob a forma de uma rede complexa de neurónios activados segundo sequências espaciais e temporais bem definidas para cada tipo de actividade linguística. Não se deve assim considerar, de modo algum, as localizações cerebrais como uma sucessão de elos funcionais organizados numa única cadeia, “em série”, mas sim como várias cadeias organizadas em paralelo, de tal modo que, quando um elo se rompe, o sistema será perturbado numa primeira fase, mas poderá eventualmente reorganizar-se, permitindo que a mesma função se efectue por redes diferentes. As funções superiores do cérebro apresentam-se portanto organizadas sob a forma de “módulos” neurónicos distintos uns dos outros e cada um com um papel próprio, mas ao mesmo tempo estreitamente interconexos segundo regras funcionais complexas que fazem intervir hierarquia e interacção de maneira variável. Uma tal teoria do comportamento, chamada “modular”, é de concepção mais complexa mas certamente mais próxima da realidade, representando de resto uma abordagem cada vez melhor acolhida na neuropsicologia.

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